Tradução e o governo

Não, eu não vou falar sobre leis nem sobre política. Outras pessoas podem falar sobre isso com muito mais propriedade. Vou falar sobre o governo como cliente.

Há muito tempo, bem antes de me tornar tradutora, eu aprendi que fornecer para o governo nem sempre é uma boa ideia. Aprendi por experiência própria, direta e indireta, e observando a experiência alheia.

Veja só: como existe uma licitação, ganha quem der o menor preço. E os prazos de pagamento, bem, não costumam ser exatamente curtos. Na minha vida passada como comerciante, vi clientes passando por grandes apuros financeiros depois de vender para o governo (principalmente o estadual e o federal) e demorar vários meses para receber. Valores altos, muitos milhares de reais. Um rombo desses no caixa atrapalha qualquer um, e eu acabei não recebendo de vários desses clientes também. Ou seja, o prejuízo nunca é só do fornecedor. Isso vale para fornecimento de mercadorias e, pasmem, também de serviços como tradução.

Hoje, o querido amigo Ricardo Souza postou no Facebook:

Esta postagem tem um quê de desabafo e destino certo, os colegas tradutores que também são empresários de tradução.

No dia 24 de novembro de 2012, postei aqui sobre um cliente com quem tinha boa relação e que fechou um contrato de tradução de longuíssimo prazo por preço vil. Na época, comentei que, ao saber da notícia, fiquei surpreso e triste de ver um bom cliente com experiência de mercado cair na armadilha do desconto por volume e que isso não daria em boa coisa. Uma ressalva, quando fiz a postagem, não sabia que, na verdade, o contrato fora assinado de fato em janeiro daquele ano e não em novembro.

Pois bem. Hoje, passado um ano do início do tal contrato e com outros anos ainda pela frente, aquele cliente antes bom cumpridor de suas obrigações de pagamento está com problemas evidentes de caixa e deixando de pagar seus fornecedores em dia, inclusive a mim. Não posso afirmar, é óbvio, que sua insolvência tenha a ver com o tal contrato. Minha experiência, todavia, inclusive como gestor de contratos muito parecidos, diz que tem e que a coisa só vai piorar. Só existe uma, apenas uma hipótese para algum resultado positivo advir de uma coisa assim, é quando o fornecedor contratado tem caixa suficiente para bancar o contrato de valor desfavorável e usá-lo para alavancar outros negócios no mercado.

Vejam bem, falei em resultado positivo, não em ganhar dinheiro com o contrato. Por resultado positivo, entenda-se não ficar no vermelho na rescisão e usar o contrato para gerar, em sua vigência, negócios similares que, estes sim, gerarão lucro. Se o objetivo for ganhar dinheiro num contrato de longo prazo a preço vil, a saída será prestar um serviço com qualidade reles (o que pode ser um tiro no pé) e burlar o Fisco (o uso de “e”, não “ou”, não é liberalidade de estilo). Não há outra opção.

É por isso que peço a vocês, empresários de tradução, de quem só quero a prosperidade até mesmo por uma questão de sobrevivência própria, não se deixem levar pela tentação dos números e pelo pernicioso pensamento de “vamos ganhar isso agora e depois a gente dá um jeito”, principalmente quando o negócio envolver empresas estatais. Não há jeito nenhum, a não ser jogar a própria reputação no lixo e violar a lei, além de detonar a relação com quem, com denodo e profissionalismo, presta serviços a vocês.

Porém, se esse embrulho todo não incomodar nem um pouco, vão fundo. Mas estejam preparados para ir ao fundo mesmo e se sujarem na lama que está lá.

Essa história corrobora o que eu aprendi a custo de observação e um tanto de prejuízo: antes de se animar com os valores brutos (“caramba, vai dar para faturar X mil reais em Y meses!!”) é preciso sentar e fazer as contas. Com muita calma e realismo. Sabe aquele papo de que mais vale um pássaro na mão do que dois voando? Pois é, também encaixa direitinho aqui. Você precisa se perguntar – e se responder com toda a sinceridade que puder:

– Tenho condição de trabalhar esse tempo todo para este cliente sem prejudicar meu relacionamento com os outros?

– Tenho caixa para pagar todas as contas e impostos do período – incluindo os tradutores que trabalharem no projeto! – caso o cliente governo atrase o pagamento (e acredite, esta possibilidade não é tão remota quando gostaríamos que fosse)?

Certamente existem outras perguntas nesta lista, mas essas duas aí são as mais importantes para este singelo pitaco. Porque se a resposta a uma delas for não, meu amigo, você vai acabar enrolado.

6 respostas para “Tradução e o governo”

  1. Obrigada a todos pelos comentários. A intenção deste post foi contar minha experiência (e a do Ricardo) para alertar os colegas, assim quem sabe menos gente acabe em apuros por pura ingenuidade. Infelizmente esses casos continuam mais comuns do que a gente gostaria…

  2. No final os anos 9o participei de algumas licitações em São Paulo. Sete, para ser exato. Ganhei as sete, a preços razoáveis. Mas eram outros tempos, quase pré-internéticos, e não havia a concorrência predatória que há hoje em dia. Hoje não participo mais de licitações. Mas há pouco tempo me inscrevi em uma, um pregão eletrônico, só para ver como funcionava atualmente. O critério é o menor preço e é um leilão reverso: ganha quem aceitar menos, no espaço de tempo atribuído ao pregão. Naquele caso específico, o “vencedor” (se é que dá para usar esse termo) ofereceu pouco mais de R$ 8,00 (oito reais) por lauda. Isso, na minha opinião, só é viável com tradução automática (e sem pós-edição). Impossível trabalhar assim. Até nunca mais, licitações! 🙂

  3. Eu me dei muito mal uma vez. Apareceu a Justiça Federal com a tradução de todos os autos de um processo e era mais de 100.000 palavras a um preço, digamos, razoável. Passei dois meses só neste projeto. Quando entreguei, me disseram, você só será pago quando o governo federal enviar verba, há outros na fila, advogados dativos, peritos, etc. Resultado, demorou um ano para eu receber. Isso porque eu ligava toda semana, para pedindo para priorizarem. Passei maus bocados, pois fiquei dois meses sem trabalhar para mais ninguém. Serviu-me de lição.

    1. Já passei situação semelhante com uma agência que demorou por volta de 6 meses para me pagar um trabalho que foi referente a um pregão que tinha ganhado e fiz tudo no prazo combinado, falamos tudo direitinho sobre pagamentos e depois ouvi algo dessa sorte: “ah, o cliente (governo) ainda está revisando o material e só depois que fizermos a prova final e recebermos é que te passamos sua parte”. Pensa na decepção? Ainda bem que tinha programação de outros trabalhos e não estava tão dependente só desse valor, mas que foi de chatear, lá isso foi. Uma lição: Parcimônia no que aceito de projetos. Nessa situação, aprendi que nem tudo que reluz é ouro, meeeesmo! 🙂

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