A primeira vez a gente nunca esquece

Publicado originalmente no Ponte de Letras.

Nunca tinha pensado em traduzir livros. Estou acostumada a cronogramas relativamente curtos (prazos de 15, 20 dias no máximo, para projetos maiores) e assuntos diferentes a cada projeto, e gosto disso. É bom variar, deixa a cabeça arejada. Um dia, uma colega da antiga comunidade de tradutores do Orkut me disse que a editora dela recebeu um livro que “era a minha cara”: Help your Kids with Science (Ciências para pais e filhos, na edição brasileira). Dividido em três partes, biologia, química e astronomia, trazia informações básicas para os pais se atualizarem e poderem ajudar os filhos. Realmente, era a minha praia! Química é minha principal especialidade, e ela sabia disso por minha participação na comunidade de tradutores do Orkut, a saudosa “50302”, e no grupo de tradutores do Facebook.

Aceitei o projeto com um frio na barriga que nem consigo descrever. Se por um lado estava familiarizada com o assunto, por outro seria a primeira vez que meu nome apareceria impresso como tradutora. Ficaria ali, gravado, para o bem e para o mal. E se eu fizesse alguma besteira? Outro agravante era a diagramação do livro: o texto deveria ter o mesmo tamanho do original, para caber nos espaços entre as várias ilustrações de cada página. Por questão de custo, a impressão seria feita para vários idiomas de uma vez. O prazo, então, era outro fator limitante e, assim, a terceira parte (astronomia) ficou a cargo de outro tradutor. Uma pena, porque eu teria adorado traduzir tudo!

Os capítulos chegavam em PDF, o que é ótimo, porque eu poderia extrair o texto e traduzir com o memoQ, minha CAT do coração. Mas quando comecei a preparar o primeiro lote, veio a decepção: a diagramação não permitia um copia/cola simples para transferir o texto para um documento do Word. Percebi que perderia um tempo precioso com isso, o que me atrapalharia com o prazo do livro e dos outros projetos (porque tradutor raramente faz uma coisa só de cada vez), e lembrei de uma pessoa muito espertinha em assuntos tecnológicos, apesar da pouca idade: minha filha. Ela passou a preparar o texto para mim, extraindo do PDF e colando no Word, deixando tudo formatado e pronto para traduzir. Antes que me acusem de trabalho escravo, ela foi generosamente recompensada pelo trabalho. 🙂

A pesquisa foi outro desafio. Cada página do livro trata de um assunto diferente, então quando a pesquisa de um assunto engatava… mudava a página e o assunto. Eu passava da estrutura da terra para botânica, depois anatomia de insetos, de mamíferos, depois ecologia.

A terminologia não deu tanto trabalho quanto eu imaginei inicialmente, talvez por serem assuntos dos quais gosto e entendo um pouco – ou muito, dependendo do trecho. Mas perdi boas horas pesquisando o nome de partes específicas do cérebro, por exemplo, até desistir com as incoerências que encontrei pelo caminho e pedir socorro para uma amiga tradutora e ex-neuropediatra, que resolveu meu problema em segundos. Ser tradutor também é saber pedir ajuda para as pessoas certas (depois de pesquisar e pesquisar e pesquisar, obviamente, porque o tempo dos outros vale tanto ou mais que o seu).

O registro (ou tom, como preferirem) do texto foi um pouco mais complicado de lidar, por causa do meu histórico. Na época eu estava muito mais acostumada a bulas de remédio e estudos clínicos, textos mais sóbrios, por assim dizer. Demorei alguns dias (e algumas revisões) para pegar o jeito do livro, uma linguagem mais solta, voltada para o público leigo, apesar de técnica. O primeiro lote eu li, reli e mexi várias vezes antes de finalmente decidir mandar para a editora. Ah, o alívio do feedback positivo dias depois! A alegria de ler “a tradução está muito boa, deu pouco trabalho na revisão” não tem preço.

Me chamem de louca (não seria a primeira vez), mas adorei a complexidade desse projeto! Continuo morrendo de medo de acharem alguma barbaridade que eu tenha cometido no livro, mas descobri que isso é mais que normal entre os tradutores editoriais, então que venha o próximo livro. Quem sabe até um não técnico?

2 respostas para “A primeira vez a gente nunca esquece”

  1. Val! Não é uma delícia isso? Eu já fiz vários livrinhos de ciências para a Ciranda Cultural… e tenho as coleções aqui em casa. Meu pequeno Gabriel adora ver meu nome nos livros, e os colegas dele também!
    Apesar do pagamento… eu faço com o coração!
    Bjim

    1. A Natália tem o maior orgulho de dizer que me ajudou com o livro! Meu nome só aparece nesse, mas ela adora procurar o nome dos amigos tradutores nos livros e nas legendas. Diz que é quase como se fosse o autor. 🙂

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