Não chore sobre o leite derramado — como identificar os bons pagadores

Um assunto recorrente entre tradutores, tanto em encontros presenciais quanto em grupos on-line de todo tipo, é a falta de pagamento pelo cliente X ou Y. Pior, X e Y geralmente são figurinhas conhecidas, que vivem sendo mencionados como maus pagadores, às vezes há muito tempo.

Isso me dá uma quase-certeza: boa parte dos tradutores tem talentos linguísticos, mas não comerciais. A maioria de nós sabe pesquisar termos, entender o texto original, redigir uma tradução corretamente, mas muitos ainda não sabem bem como cobrar do cliente o valor devido pela tradução, às vezes mesmo depois de anos no mercado.

E como fazer isso? Trabalhando para clientes no Brasil, é sempre importante emitir algum tipo de documento pelo serviço. Com uma nota fiscal ou contrato de serviço em mãos, é possível emitir depois um boleto bancário para facilitar o recebimento, que pode ainda incluir um valor de juros por dia para minimizar o prejuízo do tradutor em caso de atraso do cliente. Esses documentos permitem também enviar o título para cobrança por um Cartório de Protesto de Títulos caso o cliente não pague conforme combinado. Se o cliente não pagar o valor devido no prazo estipulado pelo cartório, seu CNPJ passa a constar em listas de inadimplentes e no Serasa, dificultando futuras operações de crédito. O único senão é que, no pagamento em cartório, o valor devido corresponde ao valor original do documento, sem juros. Converse com seu contador para saber como emitir esses documentos.

No entanto, nós também trabalhamos para muitos clientes fora do Brasil, espalhados pelo mundo, e, nesses casos, as nossas notas fiscais não têm valor algum para os clientes, e os cartórios de protesto e a ameaça do Serasa não surtem efeito. Para esses clientes, qual a forma mais prática de diminuir a chance de não receber? Consultando antes! E o leitor pode perguntar: “Consultar? Mas como assim?”

Uma comparação simples são as lojas de varejo. Se eu for comprar alguma coisa a crédito em qualquer loja, vou precisar preencher uma ficha de cadastro com todos os meus dados. Preciso dar referências, nome do banco, cartão de crédito. O departamento de crédito da loja vai confirmar as informações, verificar no Serasa se não sou inadimplente (“caloteira”, como se diz informalmente), se tenho protesto na praça, enfim, vão levantar minha ficha completa para decidir se vale o risco de me venderem um produto a prazo. Então, por que eu ou você, que temos muitos menos cacife que qualquer loja para aguentar o baque de um calote, não faríamos a mesma coisa?

Na maioria dos casos, o Serasa não resolve nosso problema pelo tipo de cliente que atendemos e, principalmente, porque usa um banco de dados nacional, não global. Mas nós, tradutores, temos alguns métodos próprios de consulta ao crédito para potenciais clientes. Os principais são:

Blue Board do Proz (acessível apenas para assinantes do plano pago);

– Arquivos das listas de tradutores no Yahoo (a maioria está inativa há alguns anos, mas o histórico de mensagens continua disponível para consulta; sempre foi muito comum colegas reclamarem em público quando não são pagos);

– Arquivos de grupos de tradutores no Facebook;

– Payment Practices (site com informações sobre pontualidade de agências de tradução desde 1999).

E agora eu vou vestir o chapéu de vice-presidente da Abrates e puxar a brasa para a sardinha da associação: ano passado firmamos parceria com a Payment Practices, e nossos associados passaram a ter 25% de desconto na assinatura, pagando apenas US$ 14,99 ao ano. Um único mau cliente que descartemos com essas informações já compensa o investimento com muita folga.

É também importante obter o máximo de informações que puder sobre o cliente: nome (ou razão social, no caso de agências), endereço, telefones, e-mail, nome do contato. É incrível o número de colegas que aceita serviço, principalmente terceirizado de outros tradutores, sem saber nada sobre o contratante além de um endereço de e-mail gratuito.

Por fim, preciso lembrar que nem todo atraso quer dizer calote. Imprevistos acontecem, conosco e com os clientes. Já me aconteceu de a fatura se perder, de a pessoa responsável ficar doente de repente, de o cheque do cliente atrasar no correio (ainda é muito comum clientes nos Estados Unidos enviarem cheques pelo correio!), de o pagamento ficar no limbo do sistema bancário, então não costumo considerar um pagamento atrasado antes de uma semana. Quando passa esse “período de graça”, a melhor atitude é enviar um e-mail dizendo que não localizou o pagamento e perguntando se o cliente pode por favor confirmar em que data foi feita a transferência (ou quando o cheque foi enviado pelo correio, dependendo da forma de pagamento combinada). Algo como “Não consigo localizar o pagamento referente à fatura X, no valor de Y, vencida no dia Z. Por favor, informe data e valor do pagamento para que eu localize no extrato”. Sem pedir desculpas por cobrar, sem dizer que precisa do pagamento seja por que motivo for. Sua parte do acordo era entregar o serviço, a parte do cliente é pagar conforme combinado.

É importante não acusar nesse primeiro momento, porque pode realmente ter havido algum problema fora do controle do cliente, e você corre o risco de ofender — e talvez até perder — um bom cliente.

Mas se o cliente não pagou mesmo e você perceber que estão enrolando, envie uma nova mensagem no estilo “Favor providenciar o pagamento até dia X, evitando assim o envio do título para protesto”.

Aliás, é importante manter também o bom-tom quando infelizmente chega a hora de informar aos colegas que aquele cliente não merece crédito. Mantenha sempre a objetividade, demonstrando um comportamento profissional. Algo como “a empresa X me deve X patacas por um serviço entregue dia tal, com pagamento combinado para dia tal”. Nas listas e grupos, o tom costuma ser mais na linha “Fulano da empresa ACME é um safado caloteiro, não me paga nem atende meus telefonemas”. Podem estar dizendo exatamente a mesma coisa, mas chamar alguém de “safado caloteiro” certamente sujeita o denunciante a represálias, além de demonstrar pouco profissionalismo. Lembre-se sempre de que, além de colegas, nesses círculos temos potenciais clientes. Seus textos e sua postura são sua vitrine.

Moral da história: é muito mais fácil, rápido, barato e indolor se precaver antes de aceitar um serviço do que chorar e espernear sobre o leite derramado.

Texto originalmente publicado na Revista Metáfrase da Abrates número 13, que pode acessada na íntegra aqui: https://abrates.com.br/materiais/metafrase-13/

 

RSS
Follow by Email
LinkedIn
Share